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domingo, 10 de junho de 2012

Ao longe os barcos de flores - Camilo Pessanha


Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
– Perdida voz que de entre as mais se exila,
– Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

Vocabulário
Grácil: delgado, delicado, fino, sutil.
Festão: grinalda, ornamento em forma de grinalda.
Dissimulando: encobrindo, fingindo.
Carmim: vermelho, muito vivo.
Modulada: melodiosa, harmoniosa.
Cauta: cautelosa, tímida, prudente, cuidadosa.
Flébil: lacrimoso, choroso.
Remir: tirar do cativeiro, libertar; perdoar.
Deplorar: lastimar, chorar

Filho ilegítimo de um estudante de Direito de família aristocrática e de sua governanta, Camilo Pessanha nasceu em 1867, em Coimbra. Era época em que a sociedade portuguesa se via sacudida pela crítica impiedosa e agitadora dos realistas, os homens da “Ideia Nova”, que pretendiam “ligar Portugal com o movimento moderno”. Junto com esse modernismo vinha a obra de um dos pais de toda poesia moderna, Charles Baudelaire, morto no ano do nascimento de Pessanha.

Dez anos antes, Baudelaire publicara Les fleurs Du mal (As flores do mal), livro maldito em sua época e marco da história da literatura, com sua teoria das correspondências (o “templo da natureza” é concebido como uma “floresta de símbolos”, onde “os perfumes, as cores e os sons se respondem”), apresentando um novo método de percepção poética do mundo.

Em 1891 Camilo Pessanha forma-se em Direito na Universidade de Coimbra e, em 1894, parte como professor de liceu para Macau, colônia de Portugal na China. A literatura portuguesa desses anos conhecia a atuação de grupos decadentistas e simbolistas, agregados sob a designação de “nefelibatas”, com os quais Camilo Pessanha teve relações. A esse ambiente também pertencia Eugênio de Castro, introdutor da escola simbolista em Portugal. Em 1896 morria Paul Verlaine, o simbolista francês mestre da musicalidade evanescente, que muito influenciou Camilo Pessanha.



O poeta retornou algumas vezes a Portugal, para tratamento de saúde ou em gozo de férias. Numa dessas ocasiões conheceu, em circunstância fortuita, na mesa de um bar, um jovem a quem declamou alguns poemas seus: era Fernando Pessoa, cuja obra seria fortemente marcada pela poesia de Pessanha. Tempos depois, em 1915, quando da preparação do terceiro número, nunca publicado, da revista Orpheu, que lançou o Modernismo em Portugal, Fernando Pessoa escreveria a Camilo Pessanha em Macau, pedindo-lhe autorização para publicar uma série de poemas seus. Pessanha não respondeu à carta de Pessoa, abandonado que estava ao ópio e à solidão, compartilhada com Ngan-Yen, sua companheira chinesa.

Entre 1915 e 1916 Camilo Pessanha passa sua última temporada em Portugal. Luís de Montalvor, do grupo Orpheu, lança no nº 1 da revista Centauro reafirmando seu credo decadentista: “Somos os decadentes do século da Decadência. Vamos esculpindo a nossa arte na nossa indiferença. A vida não vale pelo que é mas pelo que dói... Só a beleza nos interessa”. Nesse número é publicado um conjunto de poemas de Pessanha.

A expressão da dor da vida, contudo, na obra de Camilo Pessanha não é pose inspirada pelo esteticismo decadentista, sintetizado na frase de Luís de Montalvor – “Só a beleza nos interessa”. Pelo contrário, Pessanha não tem nada de artificialismo ornamental de “pose” dos decadentistas: sua linguagem é mais moderna, enxuta e precisa, e nos dá a impressão de uma funda experiência de desolação, desconsolo e ânsia.

Em 1920, um conhecido de Pessanha, João de Castro Osório, publica Clepsidra, reunindo poemas fornecidos pelo autor ou recolhidos de manuscritos que circulavam nos meios literários de Lisboa. O poeta, que parece não ter-se preocupado com a publicação de seu livro (aliás, bastante defeituosa), recolhe-se à proteção do ópio e da distância, em Macau, aonde veio a falecer a 1º de março de 1926.

Clepsidra é o grande, talvez o único verdadeiro livro de poesia simbolista de Portugal. Nele, encontramos realizado o ideal simbolista de exprimir a intersecção de subjetivo e objetivo, e o poeta chega a isso com imagens que combinam surpresa, clareza e sugestão, como nos seguintes versos, nos quais a imagem do mundo exterior e o “correlativo objetivo” do mundo interior (isto é, um fato objetivo se associa a uma emoção e a sugere para o leitor):

“Passou o outono já, já torna o frio...
– Outono do seu riso magoado.”

Os temas, frequentes em Clepsidra, de desistência ou soçobramento diante da vida se traduzem na poesia em imagens impressivas de desertos, de naufrágios, de ruínas. Ao naufrago se ligam as imagens aquáticas, presentes em alguns de seus poemas mais admiráveis. Desde o título do livro, aliás, as imagens de água se associam à representação do tempo: clepsidra é relógio de água; o curso do rio e a agitação do mar sugerem o passar irrefreável do tempo.

Também presença habitual na poesia de Pessanha é a música, estimuladora de estados de sonolência e devaneio. No poema “Viola chinesa”, o som monótono do instrumento, associado a uma conversa fastidiosa, desperta a dor da alma e, ao mesmo tempo, induz ao sono. Em “Violoncelos”, a música deflagra uma cadeia de associações em que comparecem imagens favoritas do poeta: rios, naufrágios, ruínas – tudo compondo o espetáculo do desconsolo da alma, que viaja por paragens de pesadelo através de pontes.

Comentários sobre o poema

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Outro poema em que a imagem da música ocupa lugar central é “Ao longe os barcos de flores”: o som de uma flauta chorosa corta a noite e perdura mesmo depois que tudo (a festa, os beijos) se encerra. Sua estrutura é formada por três estrofes: dois quartetos e uma quintilha (estrofe de cinco versos). O último verso da quintilha aparece em destaque. Observe que os dois primeiros versos do primeiro quarteto são repetidos no final do segundo quarteto; além disso, o último verso da quintilha é repetição dos primeiros versos em pontos específicos de outras estrofes, forma um tipo de composição poética chamada rondel.

O rondel é uma forma poética de origem medieval (França) de acentuada musicalidade; todo o rondel apresenta apenas duas rimas. Em Portugal, à época de Camilo Pessanha, foi muito cultivado o rondel de treze versos, como o texto analisado aqui.


Repare como o poeta trabalha a musicalidade: a repetição dos versos não só enfatiza a imagem sonora da flauta, mas também confere ao poema um ritmo muito sugestivo. Eles intensificam a atmosfera de sensações vagas e indefinidas, predominantemente no texto. O último verso deixa o poema em aberto, ideia reforçada pela palavra incessante:


“Só, incessante, um som de flauta chora...”


Os versos do poema são decassílabos, apresentando o seguinte esquema de rimas: ABBA BAAB ABBA A (são apenas duas rimas: A e B). É fácil notar que entre uma estrofe e outra ocorre a inversão na disposição das rimas, outro fato que procura enriquecer o ritmo do poema. Observe que a alternância das terminações –ora e –ila, no final dos versos, evoca o som da flauta.



É, aliás, a imagem da flauta o elemento fundamental do poema. Conscientemente, o poeta utilizou recursos formais capazes de conferir ao texto acentuada musicalidade; afinal, seu tema é uma flauta em plena atividade sonora. Também a escolha vocabular parece privilegiar a sonoridade das palavras em detrimento de seu conteúdo. Há versos em que a combinação de sons é tão melodiosa que se chega a ouvir notas musicais:

"Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila,"

Ou ainda:


"Cauta, detém. Só modulada trila

A flauta flébil... Quem há-de remi-la?"

Os sons representados pelas letras s e l são os que mais sugerem a melodia da flauta (aliteração). A alternância vocálica i/o também é parte fundamental nesse jogo melódico (assonância). O trabalho do poeta é tão meticuloso que chega à sequência puramente musical “remi-la”, em que, mais do que um vocábulo, temos notas musicais (ré-mi-lá).


A imagem acústica da flauta domina, assim, todo o poema. É importante notar que o eu lírico não se limita a falar numa flauta: ele a coloca vivamente em seu poema, cujos versos são verdadeiros acordes. Um poema assim deve ser obrigatoriamente lido em voz alta. O último verso da 1.ª estrofe ( “Festões de som dissimulando a hora”) constitui um exemplo de sinestesia, já que associa imagens visuais e auditivas (a flauta é uma grinalda sonora).



Observe que, ao longo do poema, as referências objetivas vão desaparecendo, restando apenas o som da flauta e o quadro de sonho e devaneio que se instaura: “E os lábios, branca, do carmim desflora...” (esta breve referência ao batom que some dos lábios sugere que o eu lírico imagina uma musicista a tocar o instrumento). As reticências acentuam o clima de “sugestão do indefinível”, tipicamente simbolista.




O eu lírico valeu-se de referências aos sons e à oposição entre luz e escuridão (antítese). Na paisagem sonora que o poema elabora, a flauta é uma imagem isolada(“viúva”), solitária. Em meio a esta escuridão, a voz perdida desse instrumento se exila; longe de um ambiente de orgia e festa, que é apenas sugerido por imagens esparsas do poema ( “Na orgia, ao longe, que em clarões cintila”, E a orquestra? E os beijos?...”), a flauta trila e chora, completamente só. Separada dos barcos de flores (em Macau, onde viveu o poeta, esses barcos eram casas de prostituição), nos quais há alegria e luz, a flauta e sua sonoridade atuam como contraponto de isolamento e solidão, uma suave melodia em tom melancólico.

Não existem referências diretas ao eu lírico no poema, mas é possível deduzir seu estado de alma. A leitura que se faz da flauta, um choro lamentativo, sugere um estado de tristeza.


O poema todo atua, dessa forma, como uma grande sugestão: sua musicalidade e sua paisagem, em que se opõe o isolamento de uma flauta à satisfação dos prazeres, nos transmite uma sutil sensação de melancolia, de solidão, típica das noites em que, por qualquer motivo, preferimos observar o mundo que nos cerca a participar dele.